Há algo de mítico e ao mesmo tempo profundamente terreno no momento em que Rita Lee sobe ao palco da praia de Saquarema, em 1976. Trata-se de mais do que um show, mas é uma interseção de juventude, música, mar, contestação e, para Rita, de afirmação. Saquarema, cidade costeira no litoral do Rio de Janeiro, era já então reconhecida a praia de Praia de Itaúna, chamada pelo mundo do surfe de Maracanã do Surf Brasileiro. Em agosto-setembro de 1976 (ou próximo disso) instala-se ali um projeto audacioso: um festival de rock ao ar livre, somado a um campeonato de surfe. Para Rita Lee, já veterana da cena, vindo de sua passagem pelos Os Mutantes, consolidando-se com a banda Tutti Frutti, e advinda de uma fase de ruptura esse “evento de praia” representa simbolicamente um entrelaçar de elementos que dialogam diretamente com sua trajetória: liberdade, hibridismo, ruptura de norma, corpo em palco, multidão-onda que reuniu, entre outros, nomes como Rita Lee & Tutti Frutti, Raul Seixas e Ângela Rô Rô, num ambiente de praia, acampamento, surfe de dia, rock de noite.
O organizador Nelson Motta projetou-o como algo semelhante ao festival Woodstock americano, o palco desabou em parte, o muro de contenção foi derrubado, o público entrou sem pagar, desastre comercial, mas épico cultural. Para Rita Lee, esse cenário faz sentido íntimo: ela, que vinha desafiando padrões musicais e sociais, atua em pleno “campo de batalha juvenil” — a praia-festival que se torna arena de uma geração que não mais aceita os limites dados. Em Heidegger, diríamos que o ser-aí (Dasein) daquela multidão habita o mundo de modo diferente, destemido, à margem dos “mundinhos” convencionais. No palco de Saquarema, Rita Lee não era apenas “mais uma cantora”. Era a mulher-guitarrista, a voz que canonizava o rock nacional, a figura que encarnava o riso insurgente. Seu repertório já trazia em 1976 a densidade de álbuns como Entradas e Bandeiras, lançado naquele ano, com “Corista de Rock” e “Bruxa Amarela”. Nesse palco de surfe e som, ela torna visível o que Foucault diria ser a micropolítica do poder: o corpo feminino ocupando o palco, a mulher que ri, que grita, que não se submete. A presença de Rita ali é resistência estética e vital: ela assume o lugar que o “rock macho” historicamente negou-lhe. O festival foi também um sintoma de juventude pós-68 que girava em torno do “queremos outra coisa”: música, praia, liberdade, resistência. Rita Lee, por sua vez, já simbolizava essa tensão: a mulher que sai de um grupo (Os Mutantes), monta sua banda, faz música de massa, mas com autenticidade. Assim, o momento de Saquarema se torna ritual: surfe de dia, roque de noite, fogueira simbólica, ondas simbióticas. Se Rita Lee, como vimos antes, pode ser vista como uma “ontologia do desbunde” o sujeito que recusa os padrões e escolhe a liberdade então esse festival é o grande momento de concretização dessa ontologia: o palco ao ar livre, o mar em fundo, o público acampado, o show como celebração e contestação.
Aqui, o riso de Rita é dionisíaco: rompe o apolíneo da norma, dilui o poder-maleável do palco institucional, faz de palco uma praia, de praia uma arena de som e alma. Como Nietzsche indicaria: a vida como obra de arte, o rock como festa trágica e alegre. Embora o festival tenha sido “fracasso” comercial, ele permanece como registro histórico-cultural da música jovem brasileira e de Rita Lee no epicentro desse movimento. As imagens permaneceram décadas na escuridão até serem resgatadas no documentário dirigido por Hélio Pitanga. Para Rita, esse momento marca ainda a aproximação de um novo parceiro, Roberto de Carvalho, cuja convivência ela relata ter iniciado em Saquarema. No fim, é uma metáfora perfeita da trajetória de Rita Lee: o som (música autoral, rock nacional), o sol (luz da liberdade, clareira no bosque do conformismo), o surfe (onda que leva, muda, domina). Rita sobe ao palco à beira-mar em 1976 e grita não apenas com a voz mas com corpo, pose, guitarras e riso. E esse lugar é para todos que quiserem ver: a mulher que desafia, a música que transborda, a juventude que recusa o “assim como está”. Saquarema 1976 foi festa, risco e promessa. Rita Lee ajudou-nos a vislumbrar que a liberdade pode soar alto, ecoar, transformar.
WELLINGTON LIMA AMORIM é professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, surfista de ideias e viajante do tempo com Marty McFly e seu capacitador fluxo ficando sempre entre Hegel, Heidegger, e o rock psicodélico, decifrando a existência ou a ética e se perdendo nas ondas da contracultura, revisitando festivais, vinis antigos e sanduíches de história. Apaixonado pelo Brasil dos anos 70, Wellington acredita que a filosofia também dança, canta e protesta e que o espírito de liberdade de Woodstock ainda pulsa nas areias de Saquarema. Entre aulas, cafés e leituras noturnas, ele convida alunos e leitores a questionar, sonhar e, acima de tudo, viver a filosofia como quem vive em um festival de Rock que não se quer esquecer.